08 novembro, 2006

As ferrovias do Rio de Janeiro na Revolta da Armada de 1893 - Anexo

O depoimento do capitão-tenente Conceição



 Foto de Juan Gutierrez; acervo do Museu Histórico Nacional Fortificação passageira com soldados e oficiais da artilharia, 1894.

Com seus trilhos correndo paralelamente às margens da baía da Guanabara, então ocupada pela esquadra revoltada do Almirante Custódio de Mello, a Estrada de Ferro do Norte tornou-se, desde o início das hostilidades, uma peça estratégica importante para o esquema de defesa do Marechal Floriano Peixoto e do seu governo. A interdição dos serviços de barcas entre a capital e o porto de Mauá, em Magé, tornara aquela ferrovia o único acesso à Fábrica de Pólvora, em Estrela, ao norte da baía. Era também o melhor caminho para se chegar a Petrópolis, que havia sido promovida a capital do Estado do Rio de Janeiro, face à grande exposição de Niterói às forças comandadas por Custódio. Por tudo isso aquela ferrovia viria a ser intensamente utilizada pelas tropas do governo, nos meses seguintes, como meio de transporte para soldados e equipamentos bélicos. Mas era igualmente importante protegê-la, pois as pontes sobre o Meriti, o Iguaçu e vários outros rios da região por onde corriam os seus trilhos, eram peças vulneráveis e possíveis alvos de ataques ou sabotagem. Além do mais aqueles rios eram razoavelmente navegáveis e por eles seria possível que os revoltosos fizessem incursões em terra para se abastecer ou para estabelecer bases de ocupação. As pontes, portanto, mereciam enorme atenção das tropas, tanto como objeto de proteção mas, também, como um posto de defesa para conter eventuais tentativas de infiltração através dos rios.

Por outro lado, o fato de se defrontarem os cariocas e fluminenses com uma frente de batalha tão próxima às áreas urbanas, fez com que a possibilidade de contato entre os soldados e seus aflitos e preocupados familiares ficasse muito facilitada. Passado o primeiro grande susto, que levou milhares de pessoas a lotar as estações ferroviárias e a buscar outros meios de transporte que pudessem retirar suas famílias da linha de tiro dos canhões do Aquidabã e das outras belonaves sob o controle do almirante, as escaramuças e as manobras militares forma se incorporando no ritmo de vida da população.

A história de um desses muitos contatos ficou registrada por “O País”, um dos principais jornais da época, publicada na edição do dia 10 de outubro de 1893. Era a reprodução de uma carta endereçada por um leitor, o capitão-tenente Conceição, descrevendo o encontro com o filho, alistado em um batalhão de voluntários e enviado para defender a ponte da ferrovia sobre o rio Iguaçu, na chamada “Passagem de São Bento”. A revolta havia sido deflagrada a pouco mais de um mês, no dia 6 de setembro, e as pessoas ainda não tinham uma idéia clara do que poderia resultar daquela confusão. Portanto, as primeiras sensações que a contenda inspirava estavam bastante vivas e transparecem claramente do depoimento do capitão-tenente, em meio, como seria natural, às preocupações mais pessoais sobre o bem-estar do ente querido.
Por seu valor testemunhal sobre o que se passava ao longo daquela ferrovia, reproduz-se, a seguir os principais trechos da longa narrativa publicada pelo jornal.

“Ansioso por saber notícias positivas acerca da localidade e bem estar do meu filho Alfredo Conceição, há dias internado com o batalhão patriótico 23 de Novembro, dirigi-me ontem, 8, de manhã à estação de S. Francisco Xavier, da estrada de ferro do Norte, onde acompanhado de meu filho Mário, aluno do colégio militar, e de um fâmulo, tomei o trem para a Penha, supondo dali dirigir-me à Fazenda Grande, onde contava encontrar o ente querido, a quem eu ia levar o conforto paternal[1]. Ao embarcar no trem, soube por oficiais que acabavam de chegar, que o batalhão 23 de Novembro se achava guardando as pontes sobre os rios Meriti e Iguaçu, da via férrea do Norte, achando-se meu filho nesta última. Estando a largar o trem, segui para a Penha, afim de lá tomar nova resolução.
Às 10 horas ali chegando, soube que só às 5 horas [da tarde] haveria outro trem para cima e que, se eu nele fosse, não voltaria no mesmo dia
[2]. Passei um telegrama a meu filho e preveni-o de que nesse trem [o das 5 da tarde] iria a muda de roupa[3].
O coração me ficava despedaçado, uma espécie de remorso me corroia a alma e me dizia que eu devia ver meu filho, custasse o que custasse. O chefe da estação da Penha me informara que dali ao Iguaçu havia a distancia de 20 quilômetros, distância que em três horas poderia ser vencida a pé
[4]. Mas a lama escorregadia que havia sobre o leito da estrada era um obstáculo digno de ser ponderado. Entre o desejo e a ventura, o meu filho Mário entusiasmou-me. Eram 10 horas e 20 minutos quando empreendemos a marcha. Vencido o primeiro quilômetro, vi, pelo relógio, que o havíamos feito em 13 minutos; dando para os outros [quilômetros] 15 minutos, formei a intenção de às 2.1/2 da tarde abraçar meu filho, e assim foi.
Ao meio-dia avistávamos a ponte sobre o rio Meriti e, quando nos achávamos a 500 metros, eis que surgem de trás das colunas alguns vultos humanos encapotados, os quais, empunhando armas, puseram-se em atitude de obstar-nos a marcha, intimando-nos a grandes brados:
“- Faça alto!”
Obedecemos, e depois que por meio de gritos expliquei-me, recebi a ordem de
“- Pode chegar.”
Aquilatei por isso que os rapazes, apesar da noite cruel por que passaram anteriormente, estavam alerta, firmes e resolutos.
Chegado à ponte, verifiquei isso mesmo e mais, que até àquela hora não tinham almoçado os que a guardavam. Eu mesmo tive de levar o recado ao quartel do posto, dali a 2 quilômetros, onde à meia-hora depois do meio-dia cheguei, tendo a satisfação de ter encontrado em caminho o troço [grupo] que ia render os outro
[5]s.
Depois de pequeno descanso, empreendi de novo minha marcha. Estávamos no quilômetro 20 e a chuva começou a cair, fina, sem aragem alguma, pelo que o suor nos corria em grossos bagos
[6]. Os pés se nos pesavam, graças ao acumulo da lama pegajosa nos sapatos. Raros transeuntes encontrávamos. Às 2 horas verificamos estar no quilômetro 25 e ouvimos dois tiros. Estávamos em uma curva quando, ao sairmos dela, avistamos a ponte grande do Iguaçu, sobre a qual se movia um troço de homens que pareciam satisfeitos, pelos modos por que se moviam apesar da chuva. Apertamos o passo e depois da mesma formalidade anterior aproximamo-nos da ponte, sobre a qual, empunhando a sua arma, avistei entre os outros o meu filho, que veio logo abraçar-me e ao seu irmão.
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Tive ocasião de verificar o bom espírito dos voluntários, a decidida vigilância que eles exercem e o desejo ardente que nutrem de se medirem com os inimigos da República.
Já tinham almoçado, sendo-lhe a comida feita por contrato, da estação do Pilar, dali a 3 quilômetros, em troly.
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Confortei meu filho, aconselhei-o a uma boa disciplina, não obstante o digno comandante major Dr. Moraes e capitão Elídio afirmarem-me o seu excelente modo de proceder; fiz-lhe ver que o voluntário, mais que outro qualquer, tem o dever de ser o tipo do soldado, e às 5 horas fui tomar o trem no Pilar, chegando a S. Francisco Xavier às 8.1/2 da noite e à casa, estropiado, às 9.1/2.
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Notas:
[1] A Fazenda Grande era uma gleba de terra onde se desenvolveu o bairro da Penha.
[2] Em 1889 o trem fazia apenas duas viagens diárias. Levava cerca de 20 minutos para ir de S. Francisco Xavier à Penha.
[3] Uma das condições para a concessão de ferrovias na época é que as empresas concessionárias construíssem linhas telegráficas interligando as estações.
[4] Na verdade a distância entre a estação da Penha e a ponte sobre o rio Iguaçu, seguindo a linha do trem, era de 17 km.
[5] Ficaria próximo à atual estação Duque de Caxias, que dista 1.700 metros da ponte do Meriti.
[6] Neste ponto (km. 20 da ferrovia) fica a ponte sobre o rio Sarapuí. Como o relato não menciona a existência de vigilância armada nesse local é provável que esse rio já não tivesse naquela época condições de ser navegado. Além da ponte do Sarapuí o capitão-tenente deverá ter passado também nos pontos onde existiam as paradas de Meriti, Sarapuí, Pantanal e São Bento. Nesses pontos não deveria haver qualquer instalação digna de referência e que pudesse servir de apoio aos utilizadores da ferrovia.

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